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O PRIMEIRO ESPETÁCULO DO ANO


© Gil Grossi

Paris, 12 julho de 2020. Eduardo Bonito me ligou. Um convite para substituir Marcia Tiburi em uma conferência que deveria acontecer logo após a apresentação do espetáculo O Samba do Crioulo Doido, na programação Brasil Sequestrado, Festival de la Cité, em Lausana, Suíça. Tive dois dias para me preparar. Ao sair de Paris, percebo o estresse das máscaras para conter a pandemia do coronavírus. O controlador do trem repreende o passageiro ao meu lado: “Em duas horas de viagem, já o alertei três vezes sobre o uso da máscara. Agora, o senhor vai ganhar uma multa.” Por volta dos seus 80 anos, o senhor bufa colericamente. Por que conto essa história? Ora, porque aconteceu. Enquanto isso, fazia minhas anotações. Pensei em começar minha conferência com a citação: "Nada mata mais um homem como ter que representar um país", de Jacques Vaché, afirmando que, hoje, no Brasil haviam 210.147.123 habitantes, porque Calixto Neto e eu estávamos fora, quer quiséssemos ou não, para fazermos nosso trabalho distantes da tensão hedionda que impera neste território desde 2018. Foi no início de 2020 que Calixto esteve com Luiz de Abreu, em Salvador, para aprender O Samba do Crioulo Doido. E, claro, estudar não apenas os gestos célebres desse trabalho — clichês que mortalizam o corpo negro — mas passar um tempo acompanhado por quem corporou tudo o que está em cena durante a vida. Antes de ir para o teatro, uma história sambou entre nós. Não é que balançou o quadril pra lá e pra cá. O samba nos ensina a desviar das pedras. Muitas vezes, a cantar pedras. O espetáculo começa. Vejo Luiz em cena no corpo de Calixto. Impossível deixar de fazer esta associação. Calixto deixar Luiz trabalhar. É no corpo de Calixto que Luiz agora ginga. Impossível não lembrar da estreia deste trabalho. Impossível não lembrar que um banco pagou pela produção deste Samba. Qual banco neste mundo hastearia a bandeira por detrás? Qual instituição brasileira se colocaria à frente deste discurso, de pé, com os braços pousados ao lado do corpo? Estas perguntas não pretendem afirmar o seu contrário, estas perguntas querem ouvir respostas. Basta de cinismo. Importante ressaltar que as cinco edições do Rumos Dança apresentavam processos ou estreias. Assistíamos O Samba do Crioulo Doido pela primeira vez. Foi uma surpresa para a comissão, para o público, para a instituição o que vimos. Será que se o Itaú soubesse de seu conteúdo o bancaria? Esse trabalho só foi possível de ser veiculado graças ao apoio do diretor do Itaú Cultural, Ricardo Ribenboim, e da gerente do Núcleo de Artes Cênicas, Sonia Sobral. Dependemos de pessoas que se arrisquem pela existência de obras de arte. No fundo, instituições são pessoas. Pessoas que as tornam vivas diariamente, que ousam ou obedecem, seja em tempos conservadores ou de abertura. Ao deixarmos a sala de teatro do Itaú Cultural, festejávamos algo que não conhecíamos ainda no Brasil em 2004: um coreógrafo preto, nu, dissecando a estética do racismo no epicentro elitista da dança contemporânea brasileira — dança que pensa, escreve, discursa, preocupada com suas viagens para a Europa. Pois então, o que fazer com o que havíamos visto? Deixar arder. Lembro, tive a chance de dividir noites com Luiz ao redor do Brasil e na Europa com a dupla Transobjeto & O Samba do Crioulo Doido. Haviam decidido que ambas as peças, coladas uma a outra, dariam cara a tapa ao projeto de descolonização e antirracismo no mundo artístico brasileiro, vulgo, contemporâneo. Caetano Veloso e Elza Soares já estiveram juntos em Língua. Ambos estariam novamente em cena, corporados por Luiz e por mim. Um preto e um branco, dois viados. Engraçado que quando apresentamos fora do Brasil, Transobjeto era de difícil compreensão para muitos europeus. Sem dúvida, a descolonização é uma questão obscura, o racismo está na ponta da língua. No Brasil, terminávamos a apresentação com festa: eu bêbado, ele incorporado. Juntos, saíamos para jantar e conversar. Belle Époque dos festivais brasileiros. A cultura fazia parte de um programa político do governo, um programa que não misturava a sesta com o sono da noite, como no governo atual. Tinha sempre o after. Oh, que saudades que tenho da aurora da minha vida. Luiz tem aura dourada. Quem conviveu com ele reconhece. Calixto foi aquele que recebeu a coroa. Contraluz, entrou em cena, ao som de uma batida constante — como a do coração. Havia uma tensão furiosa do menor gesto ao mais expressivo. Seus braços guiavam o trânsito do corpo. Ao longo de bons minutos na sombra, descobrimos Calixto, iluminado pelo corte seco de uma luz frontal. O rei está nu. E ele sabe disso. Calixto explorava cada dobra de seu corpo, como se tivesse incomodado por alguma coisa que via. Não havendo opção, debochava, para se desviar daquilo que nós público não podíamos ver. Uma canção francesa caia do céu e aquele corpo se juntava a ela, como numa receita de “Cassoulet”, a feijoada francesa. Claro, tudo veio de lá. Chega o momento de saudação à bandeira. Calixto desfila, como sua extensão. Dança a saudade do país onde nasceu. Entre as mãos, sobrou apenas a bandeira. O Brasil perdeu a graça. Está afônico, indigesto, sem ritmo. Ao fim do espetáculo, como quando o sol se põe às 18 horas e todos os seres da natureza se recolhem, Hora da Ave Maria. Calixto samba, retorno à escuridão. Enquanto Calixto dançava, eu lembrava. Quando estávamos em trânsito, Luiz e eu recitávamos Mário de Andrade: “Vaca brava dá leite se quiser”. Brincávamos de Macunaíma, exportando leite para a Europa. Uma vez, ele me disse: “Sabe que o povo da dança acha que somos inimigas?” Respondi: “Vamos fazer uma selfie e postar nossa cara nas mídias sociais com a legenda: Marlene & Emilinha”. Lembro do que assisti em Lausana nesta última quinta-feira, 9 de julho, e do que tentei falar para o público reduzido do festival, devido às medidas de segurança (mesmo que o teatro tivesse sido montado ao ar livre). Para entrar, cada pessoa deveria deixar seu nome completo, e-mail e telefone com o recepcionista. Ao fim da peça, fui convidado para subir ao palco de Calixto, de Luiz, do Samba. Não dá para furar essa barreira sem perder a voz. Foi exatamente o que aconteceu. Era como se tivesse perdido conexão com as coisas que havia escrito, como se não interessassem mais — nem pra mim, nem para as entidades que, agora, suspendiam aquele lugar. Você pode até imaginar que o tom de minha conversa esteja descambando para o místico, mas eu estava lá, eu vi, e você pode ver também se quiser. Senão, entendo que a ciência pode nomear esses eventos como distração. Entrei no palco para falar de La Bête, ou seja, do Brasil sequestrado ao qual faço parte e que, Calixto e tantos outros também fazem. Mas nada saiu como o programado porque, antes, dançamos um samba. E o samba, como disse, chuta a poeira para o ar. Decidi, então, falar sobre o Samba, sobre Calixto se deixar habitar pela escrita de uma outra pessoa. É de pai para filho que a história se repete. Precisei abrir o computador para encontrar o que havia perdido. Conectar informação com emoção em tempo real é para poucos, e eu não sou um deles. Ainda mais quando tenho na minha frente um idioma que aprendi na rua, de forma intuitiva. Evitei pedir desculpas. Pedi licença. Acredito que nem precisava ter agido desta forma, porque o público estava atento não só às palavras. É assim. No meio da arte, corpo e palavra significam e permitem também serem lidos cada qual na sua função. Escutar e perceber. Não deixar de fora nem um nem outro. O silêncio, o gaguejar, o perder-se fazem parte, igualmente, do gênero discursivo. Terminei a intervenção com um buraco no estômago. Acredito que esta sensação você compreende. Uns e outros vieram conversar comigo. Comprovei. Saímos do teatro e fomos para uma festa. Nos olhos brilhantes de Calixto já não corriam mais lágrimas, embora tivessem hidratado este canal que a gente não vê, mas sente que existe.

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