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RECEITAS E DÚVIDAS

Começamos a peça embrulhados no canto esquerdo do palco. Na realidade, tudo está escuro e Wagner entra em cena com uma vela e um copo com água. Wagner dá o copo com água para a Sheila. Gustavo e Wagner a observam, mas o olhar não busca nada (nem na bebida, nem em Sheila). Os três estão vestidos com roupas cheias de volume, brilhantes. Quando Sheila termina de beber a água, Wagner faz um carinho em seu cabelo. Gustavo olha para os dois, mas não entende o gesto. Wagner leva Sheila pelo braço até o centro do palco. Wagner segura as pernas de Sheila e escala seu corpo até segurar o braço de Gustavo. Quando Gustavo sente que existem quatro mãos segurando seu braço, ele se assusta e grita. Sheila e Wagner riem e têm a cabeça muito próxima uma da outra, Gustavo segura as quatro mãos de Sheila e Wagner e imagina, em sua cabeça, que ambos são um bicho. Ele pensa, olhando pra cima: "Vocês são um bicho". Sheila ouve uma música de Philip Glass, e o movimento dos três nunca para. Os três evitam criar imagens, porque as coisas estão vivas. Wagner passa a mão sobre a saia da Sheila e Gustavo os deixa a sós. Ele vê outra coisa no fundo da sala e vai até ela. Gustavo chega mais perto daquilo que pensou que estava ali, para ver se a entende. Enquanto isso, Sheila e Wagner trocam um beijo. Sheila beija o antebraço de Wagner, e ele acha aquilo muito bom. Wagner se levanta, caminha até onde Gustavo está e beija o seu antebraço. Sheila olha seu antebraço. (Os três nunca se observam para não destruir aquilo que está sendo construído.) Wagner faz uma pausa, troca o CD. Sheila se lembra que gostaria de dançar alguma dança que se faz no chão: como a dança das cobras, ou como a Dança Moderna. Enquanto isso, Wagner vira a cara para não ver essa parte do sonho, e Gustavo fuma um cigarro ainda procurando alguma coisa que deveria estar por ali. Outro cigarro cai do céu. Sheila fica cansada e vira uma cobra. Wagner fica de quatro e pensa em Elza Soares. Ele imagina que sambar é bom, mas ouve Philip Glass. Gustavo lembra que está gordo e que precisava cortar o cabelo, que não desligou o computador antes de sair de casa e nem trancou a porta da cozinha. Sheila se finge de morta Wagner dá três passos pra frente e levanta as mãos para o céu. Sheila fica de calcinha e vai para o centro do palco enquanto um som digital de multidão sai das caixas de som e um globo de luz em alta velocidade ilumina o movimento dos seus cabelos. Gustavo grita, mas ninguém o escuta porque ele não está ali. Wagner continua a pensar como seria bom estar perto de Sheila e Gustavo. Gustavo leva um copo de água para Wagner. Enquanto Wagner bebe água, Gustavo e Sheila olham fixamente em sua direção, mas não é para Wagner nem para o copo com água que eles olham, eles observam o além.

Sheila pensa em sua vó Isabel que morreu, e Gustavo pensa no pai da Elisabeth Finger que morreu. Wagner não pensa em nada. Ele só bebe água. Wagner enfia o copo vazio dentro da boca. A boca está bem aberta. Gustavo e Sheila decidem fazer outras coisas. Gustavo segura o braço de Wagner e o leva até o centro da sala. Sheila segura as pernas de Wagner escala seu corpo até pegar os dois braços de Gustavo. Quando ele sente que existem quatro mãos em seu braço, Gustavo grita Deus em Iorubá. Ninguém entende o grito, mas podem senti-lo porque foi úmido e cheio de alegria. Sheila e Wagner se arrepiam até o pescoço e, em seguida, mudam de assunto. Sheila se levanta para ver alguma coisa no fundo do palco e fuma um cigarro de palha que cai do céu. Wagner lembra de uma dança que ele adora, enquanto está no chão, e começa a cantar. Gustavo não está nem aí para os dois. Sheila grita. Ninguém entende, porque ninguém está ali. Gustavo acha que tudo nessa vida é muito simples, então fala bem alto: "a vida é muito simples". Wagner continua cantando. Sheila troca o CD. Ela sente saudades dos dois. Wagner abraça Gustavo e o beija na boca. Sheila traz um copo com água para Gustavo, enquanto ouve uma ópera. Os três ouvem uma ópera, bem felizes. Os três imaginam que estão sonhando como quando eram adolescentes. A luz se apaga. A luz se acende. A luz se apaga e continua apagada por um pouco mais de tempo. O público só pode ouvir nossa respiração e a ópera que sai de um iPhone e não de um aparelho de CD. Quando a luz se acende, Wagner, Sheila e Gustavo estão bebendo água. Era só isso que faltava.

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