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O que abunda não falta


© Leonardo Pastor

A Sala Adoniram Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, tem 622 lugares. De onde eu estava, no último sábado, 21 de novembro de 2014, não dava para imaginar quantas pessoas ocupavam os espaços vazios desse teatro. Eram muitas, como geralmente não acontece em uma apresentação de peças contemporâneas.

Macaquinhos integrava a 22º edição do Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade. Eles eram 10: Alzira Incendiária, Andrez Lean Ghizze, Caio, Daniel Barra, Fernanda Vinhas, Luiz Gustavo Lopes, Rafael Amambahy, Renata Alcoba, Teresa Moura Neves, Yuri Tripodi.

Do lado de fora, a fila era grande. As pessoas conversavam sobre aquilo que iria se passar no teatro (e sobre outras coisas). Fomos convidados a acompanhar um trabalho sobre macacos e cus (até aqui, era o que eu imaginava).

Ao lado da fila, algumas pessoas se destacavam. Elas passeavam entre nós com um jeito "selvagem" – sem aqueles trejeitos de quem já conseguiu comprar uma casa, ter o nome pulicado em um jornal ou em um verbete no Google. Entre macacos, coisas como essas deixam de ter importância.

E eu me deixava levar.

Alguns de meus vizinhos se viam ameaçados, constrangidos, flertados, envaidecidos. Tudo isso era fruto do meu pensamento: sou eu quem penso na reação dos meus vizinhos – é tudo mentira, é tudo figura –, como Péricles Cavalcanti não deixa esquecer.

Algo já havia começado no espaço de fora, na fila, nesse evento único que deixa as pessoas próximas uma das outras, mesmo que algumas dentre elas não se falem, por não se conhecerem; mesmo que outras se expressem como se estivessem em casa, com seus amigos; mesmo que algumas interrompam o barulho local com seus fones de ouvido. Na fila há algo que justifica a aproximação (sem embaraço, sem rancor).

No teatro, aqueles que nos olhavam se despiam uns aos outros, com cuidado. Eles se tocavam, não precisavam se imaginar. Eles se despiam à procura de algo que só podia ser visto do lado de dentro das roupas. Era possível distingui-los. Ali, a fila era outra. Era móvel. Cruzava o espaço reservado para a cena, se aproximava do público, se distanciava dele, não deixava de existir. O silêncio no espaço se tornava outro, não mais aquele reconhecido como “o silêncio de um teatro” – ele era palpável. O ar descia grave, gravíssimo. Alguma coisa acontecia no limite de cada um. Hipótese: o eu que assiste se conecta com o próprio cu em cena, se contrai.

Macaquinhos brincava com o que não se poderia brincar no mundo dos humanos. Por isso é macaco, porque desconhece a moral. Para um macaco, tocar o cu é como dar um abraço. Para um ser humano, não. Os humanos precisam fazer espetáculos para tocarem seus cus. Os macacos fazem dos cus um espetáculo humano. E se divertem, se cansam, suam.

As entidades-macacos apresentaram seu próprio universo. Desistiram de procurar assunto do lado de fora, investigaram questões que surgem nos galhos de suas próprias árvores, sem medo, sem pudor de gostar daquilo que, para o mundo (da arte ou da rua), se deve esconder. Durante a performance, pensei em Butô, em Bataille, mas ali não havia nada disso. O assunto era outro, era mais embaixo.

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