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E vou deixar todo mundo valorizando a Batucada


© Sergio Caddah

Ontem estava pensando em como chegamos até aqui. Em como passamos de um momento histórico a outro, citando o anterior e, ao mesmo tempo, apagando suas relações com aquele que está se construindo. Ontem estive no espetáculo Batucada, do Marcelo Evelin, lembrando da música de Synval Silva, que até hoje pode fazer chorar. Não sei o porquê, mas pode.

Lembrei que uma batucada se faz com um pedaço de pau, socando um objeto que faça barulho. Ela acorda aquele sentido preguiçoso, sem ânimo; bate porque só pode bater. “Dói porque é bom de fazer doer” [1].

Quando criança, ouvi muitas batucadas no quintal do vizinho. Morava em Volta Redonda, Rio de Janeiro, ao lado de gente feliz. S’eu não participava da festa, porque faltava o convite, fazia a minha própria, com o som que viajava por cima do muro. Dançar era preciso, ver quem bate não era preciso.

E tudo ia muito bem.

Esse é o lugar da batucada na minha vida; na vida dos outros, não posso saber. Só imagino o que ela queira comigo. Para onde esse som quer me levar? Porque é fato que ele leva, não traz. Este som se desapropria dos problemas sem jeito, sem solução. Ele não tem dívida com o passado e com suas experiências tristes. A batucada é para agora e para que a vida continue.

Seu ritmo é desapegado, feito por e para pessoas entendidas, para gente que gosta de pular ao mesmo tempo com outras, para gente que gosta de se ver, para gente que curte gente, para suar. Sua sonoridade é também de luta: chama a força madura, com experiência própria, que reconhece a dos outros por aqui. Ela agrega, porque é bem alta.

Seu texto veio dos morros e, no centro da cidade, vira metáfora. É possível chegar perto, sem mesmo entender o porquê. Ele faz sentido, conecta, vibra, se espalha por aí. Muita gente o conhece e gosta.

A batucada convoca a vontade de rir a sair de dentro da cabeça. O corpo se abre de uma forma que para de pensar, abraça, não se vê só. O rosto de quem batuca e de quem ouve se modifica com cada toque do batuque, e como são muitos, no fim de uma festa, ele se torna irreconhecível.

É assim bater e, não, assado.

Batucar não tem vínculo político com esse ou com aquele, batucar não tem cor verde e amarela nem vermelha, batucar não vinga o luto, não dá golpe, não perde o passo.

Mas eis que chega a roda viva e carrega o batuque pra lá [2].

A batucada de hoje é a mesma de ontem custe o que custar.

[1] Raul Bopp.

[2] Paráfrase à canção Roda Viva, de Chico Buarque.

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